Nas eleições de outubro de 2018, o Brasil elegeu para a presidência o ex-militar e populista de extrema direita Jair Bolsonaro, que fez uma campanha anti-direitos particularmente agressiva para com os direitos das mulheres e das pessoas LGBTI. CIVICUS fala com Paula Raccanello Storto sobre o impacto que o governo de Bolsonaro, que começou em Janeiro, já está tendo na sociedade civil. Paula é mestre em Direito pela Universidade de São Paulo, advogada com uma longa experiência na prestação de serviços a organizações da sociedade civil (OSC) e pesquisadora do Núcleo de Estudos Avançados em Terceiro Setor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP-Neats), onde pesquisa questões relacionadas ao marco legal das OSC no Brasil e na América Latina e às restrições da liberdade de associação.
Com base no que aconteceu nas poucas semanas desde sua inauguração, como está a relação do governo Bolsonaro com a sociedade civil brasileira?
A sociedade civil brasileira é heterogênea o bastante para que haja relações de todos os tipos com o novo governo, mas, olhando para o universo das organizações mais representativas de defesa de direitos podemos afirmar que a relação com o governo de Bolsonaro tem sido ruim desde o primeiro dia, o que não foi exatamente uma surpresa. Já sabíamos o que Bolsonaro pensava das organizações da sociedade civil. Durante a campanha ele disse que se fosse presidente não haveria dinheiro público para as ONGs, atacando as organizações com frases como “esses inúteis vão ter que trabalhar”. No mesmo discurso, também disse que no que dependesse dele “todo cidadão vai ter uma arma de fogo dentro de casa” e “não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola”. Ou seja, são manifestações claramente contrárias a agendas históricas da sociedade civil organizada brasileira, que neste momento se sente ameaçada não apenas pelas possíveis ações do governo criando barreiras à sua livre atuação, mas também por eventuais opositores da própria sociedade, que se sentem encorajados pelas falas do Presidente da República a usar a violência física ou simbólica contra as organizações que defendem estas causas. Uma agenda regressiva de direitos se instaura no Brasil com o novo governo. Não foi por outra razão que durante o segundo turno das eleições, um grupo de mais de mil advogados e juristas, do qual participei, assinou um manifesto em apoio ao então candidato Fernando Haddad. Independentemente das nossas diferenças programáticas, todos os signatários daquela carta sabíamos que no segundo turno Haddad era o único candidato capaz de garantir a continuidade e o aprofundamento do regime democrático com a valorização dos direitos humanos num ambiente de paz e tolerância. Um fato marcante foi a violência que permeou esta última campanha eleitoral. Um levantamento feito pela Pública em parceria com a Open Knowledge Brasil revelou que em somente 10 dias de campanha houve pelo menos 50 ataques, a grande maioria feitos por apoiadores de Bolsonaro contra opositores. Esta legitimação da violência é um fato muito preocupante num país como o Brasil, que é uma sociedade violenta e recordista em assassinatos de líderes ambientalistas, pessoas LGBTIs e feminicídios, em que violência policial e a precariedade das condições carcerárias que aprisionam majoritariamente negros e pobres é uma realidade. Então as decisões que ele tomou nessas primeiras semanas do governo eram previsíveis, embora tenhamos dificuldade de acreditar. Em uma de suas primeiras medidas governamentais, a Medida Provisória (MP) 870/2019 que trata da estrutura da nova Administração Federal incumbiu à Secretaria de Governo da Presidência da Republica o novo papel de “supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e as ações dos organismos internacionais e das organizações não governamentais no território nacional”. Ora, num Estado Democrático de Direito é pressuposto que os indivíduos sejam livres para se reunir e se associar, podendo realizar quaisquer atividades lícitas, independentemente de monitoramento estatal. O texto da MP revela clara desatenção aos princípios constitucionais da liberdade de associação e da livre iniciativa. Adicionalmente, a ideia de criar estruturas governamentais com atribuição ampla sobre as organizações da sociedade civil é um risco por si só pois a implantação de uma arquitetura de controle estatal das atividades privadas é indevida. O texto da MP 870 nesse particular é inconstitucional e deverá ser modificado no Congresso Nacional.
Essas medidas visam a sociedade civil em geral, ou existem alguns grupos em particular que o governo procura controlar?
A MP trata das organizações em geral, sendo portanto uma interferência indevida do Estado na atuação dos organismos internacionais e das organizações da sociedade civil. A medida preocupa também pois pode significar um monitoramento às expressões de pensamento independente e às ações da sociedade civil no sentido de fazer o controle social dos governos, de exercer um contrapeso ao poder político e defender as liberdades públicas. Bolsonaro foi eleito com um plano de governo superficial, não participou de debates com outros candidatos e em suas declarações públicas a redes de TV aliadas e pelo Twitter traz um discurso desenvolvimentista, com características liberais em termos econômicos e conservadoras em relação à proteção de direitos, que encontrou eco na atual sociedade brasileira. Seus apoiadores espalharam de forma maciça fake news pelas redes sociais, a fim de atacar determinas agendas tidas como progressistas, mormente as relacionadas à defesa do meio ambiente e direitos de minorias. Depois de eleito, tomou medidas como nomear para o comando do Ministério das Relações Exteriores um Ministro que afirma não acreditar nas mudanças climáticas e as classifica como uma trama marxista. Como Ministra da “Mulher, da Família e dos Direitos Humanos”, colocou uma pregadora evangélica publicamente contrária ao aborto por razões religiosas. Passou a atribuição de demarcação de terras indígenas na Fundação de Apoio ao Índio para o Ministério da Agricultura – órgão cujos interesses são absolutamente conflitantes com a demarcação de terras. A cereja do bolo foi, depois de voltar atrás em sua decisão anunciada de fundir o Ministério do Meio Ambiente com o da Agricultura – o que causou muita polêmica e péssimas reações – festejar o fato de que organizações ambientalistas tenham criticado a escolha do seu Ministro do Meio Ambiente, que é representante de interesses agroindustriais e já declarou que o aquecimento global é “um tema secundário” e que as multas ambientais são formas de “perseguição ideológica”. Uma das primeiras ações do novo Ministro do Meio Ambiente foi direcionada às organizações ambientalistas. Ele emitiu um Ofício Circular para suspender por 90 dias a execução dos convênios e parcerias com organizações da sociedade civil. Contrária à noção de desenvolvimento sustentável, a abordagem para a área ambiental do atual governo remete a um tempo no qual preservação ambiental e desenvolvimento econômico e social eram vistas como questões opostas. Mas o desenvolvimento sustentável tem prioridade na agenda global e está assegurado na Constituição Federal e na legislação brasileira, e portanto não é decisão deste ou daquele governo que o modelo de desenvolvimento nacional deve preservar o meio ambiente e cuidar das populações que o habitam. E mais: o Brasil tem desde 2014 uma lei (No. 13.019/2014) que trata da relação jurídica entre o Estado e a sociedade civil, que foi aprovada no Congresso Nacional por unanimidade, durante a própria legislatura do então deputado federal Jair Bolsonaro e que não prevê essa possibilidade de suspensão conforme se verificou. A decisão do Ministro do Meio Ambiente viola o princípio da segurança jurídica, pois desconsidera relações contratuais formalizadas com base em lei e ainda afronta a eficiência administrativa, ao cancelar atividades nas quais o Estado brasileiro investiu recursos públicos com tempo de trabalho de seus servidores para estruturar.
De que outras formas o espaço da sociedade civil no Brasil foi afetado desde a eleição de Bolsonaro?
Ainda é muito pouco tempo de governo para conseguir avaliar os impactos das medidas tomadas. Estamos completando o primeiro mês agora. Mas na prática eu destacaria algumas questões que chamam minha atenção até este momento. Uma delas é a já mencionada indicação de pessoas notoriamente contrárias a determinadas agendas para liderá-las política e administrativamente – colocando a raposa para cuidar das galinhas, como se diz popularmente. Outro ponto é a exclusão do reconhecimento das pessoas LGBTIs como detentoras de direitos e destinatárias das políticas de direitos humanos, e a extinção de espaços de participação da sociedade civil nas políticas públicas, como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, espaço de participação social adotado pelo Brasil na área de segurança alimentar e nutricional que foi exemplo para inúmeros países. É importante destacar também que decretos foram editados pelo Poder Executivo em temas que trazem significativos retrocessos nas agendas das organizações, como a facilitação da compra e posse de armas de fogo e o enfraquecimento da Lei de Acesso à Informação, ao ampliar a possibilidade de classificação de informações públicas como sigilosas, com delegação de poder a mais servidores do que anteriormente, claramente dificultando a efetiva transparência.
Como a sociedade civil reagiu a esses ataques?
A sociedade civil está alerta, acompanhando todos atos do novo governo e se articulando no sentido de buscar a reversão de medidas contrárias aos direitos humanos e ambientais. Logo após a edição do Ofício do Ministério do Meio Ambiente, com sua péssima repercussão e com mobilização da sociedade civil, houve recuo do Ministro, que estabeleceu nova ordem no sentido de que os instrumentos contratuais em andamento devem ser continuados e que apenas os novos esperariam mais para serem firmados. No entanto, esta mudança de posicionamento não pode ser creditada apenas à reação da sociedade, pois esta forma de agir tem sido uma constante no governo Bolsonaro, cujas estratégias de comunicação inspiram-se, desde a campanha, nas de Donald Trump. Claramente é possível identificar a intenção, em alguns momentos, de confundir a opinião pública, criando factoides para que as disputas não aconteçam com base em análises técnicas, mas por meio de um encadeamento de notícias sobre medidas absurdas, reações sociais e recuos por parte do governo, passando para uma parcela da sociedade a suposta ideia de que haveria crítica ideológica por parte da esquerda e uma dita “boa vontade” do governo em reconhecer seus erros. No que diz à previsão de monitoramento estatal sobre as OSC previsto na Medida Provisória 870, houve mobilização das organizações da sociedade civil, tendo sido elaborada uma carta pública assinada por um universo diverso e representativo de organizações brasileiras pedindo a retificação da MP 870 para que fique de acordo com o texto da Constituição. Agora no início de fevereiro serão retomados os trabalhos no Congresso Nacional e as organizações estão se preparando para mobilizar os parlamentares para que respeitem a Constituição e emendem o texto para excluir esta atribuição do governo de monitorar organismos internacionais e organizações da sociedade civil. Evidentemente também se cogita buscar a proteção no Poder Judiciário caso o legislativo mantenha os textos nas bases propostas pelo Governo, bem como nos mecanismos internacionais na hipótese de as instituições nacionais falharem ao proteger esses direitos, que são assegurados por tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.
Por que é importante que a sociedade civil brasileira possa continuar fazendo seu trabalho, e que tipo de ajuda ela precisa da sociedade civil internacional?
As organizações da sociedade civil são instituições fundamentais para as democracias, assegurando a pluralidade, a diversidade, a liberdade de expressão e o respeito às minorias. Além disso, apenas com uma sociedade civil livre e forte conseguiremos trazer bases seguras para a mudança necessária no modelo de desenvolvimento. Os trabalhos do relator especial da ONU sobre liberdade de reunião e liberdade de associação, Clément Nyaletsossi Voule, vão nesse sentido, ampliando a conexão entre a liberdade de atuação das organizações e desenvolvimento, o que nem sempre é claro para as pessoas em geral. A estudiosa Elinor Ostrom, em sua consagrada obra Governing the Commons, que rendeu a ela o Prêmio Nobel de Economia em 2009, analisou diferentes estudos de caso sobre a gestão de bens comuns e determinou que estes são mais bem-geridos pela comunidade do que isoladamente pelo Estado. Sua pesquisa demonstra que a gestão de bens comuns tendentes à escassez é mais eficiente quando feita por um grupo formado por pessoas diretamente impactadas por aquele bem, a partir de regras criadas pelo próprio grupo adaptadas às necessidades e condições locais, inclusive de autoridades externas. Neste tipo de arranjo econômico que foi objeto de estudo de Ostrom, a gestão de bens comuns é realizada tipicamente por organizações da sociedade civil, com um caráter comunitário e voltadas à promoção do desenvolvimento com preservação do meio ambiente e das populações que o habitam. Lamentavelmente, no último final de semana tivemos no Brasil mais uma demonstração do acerto da tese de Ostrom, no episódio do trágico crime ambiental ocorrido com o rompimento de uma barragem da mineradora Vale no município de Brumadinho, no estado de Minas Gerais, três anos depois do rompimento da barragem em Mariana, que literalmente matou o Rio Doce, levando minerais tóxicos e destruição por mais de 500 km entre o local do desastre e o mar. As notícias sobre o caso de Brumadinho apontam para a fragilidade na implantação dos instrumentos de fiscalização existentes. Nesse contexto, é muito simbólica a notícia de que numa reunião que ocorreu há cerca de um mês, o Conselho Estadual de Meio Ambiente foi favorável, por 8 votos a 1, à concessão de novas licenças ambientais para ampliar a operação da empresa Vale na referida barragem. O voto vencido foi da única organização ambientalista que integra o Conselho e que vinha denunciando o fato aos órgãos de fiscalização. Exemplos como este são claros sobre a importância da sociedade civil para garantir um modelo de desenvolvimento sustentável de que o mundo precisa. A sociedade brasileira precisa perceber que flexibilizar leis ambientais e atacar as organizações que defendem as causas minoritárias – de pessoas e territórios que contam com poucos recursos financeiros para fazer frente às grandes corporações – é a receita certa para nos soterrarmos na lama da devastação ambiental, violência e desigualdade. Nesse momento, é fundamental ampliar o intercâmbio com a sociedade civil internacional para entender e buscar respostas à ampliação das forças dessa direita conservadora que pura e simplesmente nega pelas redes sociais a validade dos mecanismos multilaterais, a necessidade de reversão da mudança climática e os direitos das minorias. O que esta acontecendo no Brasil não pode ser descontextualizado do mesmo movimento mundial de retrocessos na agenda de direitos por meio de uma agenda repressiva de costumes e uma política econômica liberal que deixa de levar em consideração os limites conquistados nos direitos humanos e proteção de meio ambiente impostos ao processo desenvolvimentista. A ampliação da articulação das organizações brasileiras com os mecanismos internacionais públicos e privados, incluindo atores do sistema de justiça, ajudará a garantir monitoramento e visibilidade da situação brasileira, bem como acesso às Cortes Internacionais, se necessário. Investir em programas de cooperação internacional para atuação conjunta entre organizações, Estados, Universidades e especialistas certamente ajudará na promoção de ambientes habilitantes e mais favoráveis à sociedade civil e à democracia.
O espaço cívico no Brasil é classificado como ‘obstruído’ no CIVICUS Monitor. Entre em contato com Paula Raccanello Storto através de seu email, [email protected]
Publicado pela revista Civicus.
CIVICUS. Brasil: ‘Uma agenda regressiva de direitos se instaura com o novo governo’. 2019. Disponível em: https://www.civicus.org/index.php/media-resources/news/interviews/3714-brazil-the-new-government-has-come-to-establish-a-regressive-anti-rights-agenda. Acesso em: 22 out. 2020.